A
igreja de São Tiago de Cernadelo
NOTA
GEOGRÁFICA
E
HISTÓRICA
Servindo
de leito ao Rio Sousa, Cernadelo é uma freguesia eminentemente
rural, protegida, quase escondida, apesar de ser atravessada por vias
importantíssimas desde, pelo menos, a Idade Média. Do Alto dos Três
Caminhos, na partilha com a vizinha freguesia de São Miguel, seguia
uma estrada que percorria o lado nascente de Cernadelo, fazendo a
transposição do Rio Sousa na tardo-medieval ponte da Veiga.
Seguindo pelas veigas e encostas da freguesia do Torno, com passagem
pelas imediações da Torre de Vilar, esta via fazia a ligação com
a estrada que do Porto seguia para Amarante. Ainda há poucos anos
era possível observar vários trechos de calçada ao longo do
percurso desta antiga via, entretanto “apagados” pelo
“progresso”. A freguesia é delimitada a norte pelo monte de
Santo Eusébio, hagiotopónimo praticamente esquecido – embora nos
meados do século XVIII ainda estivesse bem presente na memória da
população –, que nos remete para a lembrança de aí ter existido
uma capela dedicada ao referido santo. O pároco de Cernadelo, no ano
de 1758, relatava
que está
esta “freiguezia em hu valle de hum monte chamado monte de Santo
Zebres, corrupto vocabulo, por antiguamente dizerem estivera hua
cappella de Santo Euzebio no alto do ditto monte “(Capela,
Borralheiro e Matos, 2009:304) A sul, o Rio Sousa, que lhe esboça a
orla, definindo-lhe o território. Em trabalho anterior (cf. Cardoso
e Silva, 2009) já desenvolvemos o possível algumas questões
relacionadas com a história mais antiga desta freguesia. Falamos
designadamente das referências ao mosteiro de Cernadelo e à igreja
de
São
Pedro. Ambos os templos são mencionados num documento datado do ano
de 1059, que consistia num inventário
de bens que o mosteiro de Guimarães possuía no Entre Douro e Minho.
Pela mesma época já se referia a existência da igreja de São
Tiago, actual matriz. Do mosteiro não se preservou qualquer vestígio
à excepção da referência documental, não sendo sequer possível
apontar a localização do seu assento. Já relativamente à igreja
de São Pedro, apesar de fisicamente desaparecida, a sua memória
ficou fixada no topónimo São Pedro, pequeno lugar desta freguesia.
Nas Inquirições de 1258, na colação da freguesia de Sancti
Jacobi de Cernadela,
era referida a existência de uma igreja num reguengo do rei, tudo
indicando tratar-se da mesma de São Pedro. Vejamos como o padre
Francisco Peixoto interpretou a informação presente na inquirição:
Havia
porem na freguesia uma outra igreja, situada num Reguengo, a qual era
do rei, e dava á outra [à
de São Tiago] a
décima parte
do
rendimento do referido reguengo (Peixoto,
1914:2). Não era invulgar, no distrito da mesma freguesia, a
existência de dois templos. Na perspectiva de Domingos Moreira,
poderemos estar perante a subsistência de duas igrejas, depois
unidas em uma só freguesia, persistindo, por algum tempo, uma como
principal e outra como filial (capela
curato)
até à extinção da menos importante (Moreira, 1971:123 e 124). As
Inquirições parecem evidenciar essa mesma evolução relativamente
ao mencionado no documento de 1059: em 1220 a freguesia já era
denominada São Tiago de Cernadelo, demonstrando a subordinação da
igreja de São Pedro à paroquial de São Tiago; em 1258 atesta-se
essa mesma dependência, que acabaria por resultar na sua extinção
e sua conversão em simples
capela
e/ou no seu inevitável desaparecimento. A persistência de
hagiotopónimos na freguesia é interessante. Para além dos casos já
mencionados de Santo Eusébio e de São Pedro, existe ainda o lugar
de São Sebastião, onde outrora esteve a capela da invocação do
mesmo santo e que o padre memorialista Crispim Álvares da Silva
afiança que dizem
pertençe ornalla à camera deste concelho [de
Lousada],
do que necessita muito, por dizerem a mandara fazer El Rey Dom
Sebastião (Capela,
Borralheiro e Matos, 2009:305) Em 1842 ainda se procedeu a um
restauro desta capela, por iniciativa do capitão Manuel José
Teixeira Rebelo, da Casa de Soutelo e das Pereiras, juiz ordinário
do concelho de Unhão. Hoje subsiste apenas o lugar e a memória. Em
1220, em resposta às Inquirições de D. Afonso II, o pároco de São
Tiago de Cernadelo afirma que havia aí reguengos e cinco casais
propriedade da própria igreja. Mais tarde, nas Inquirições de
1258, os jurados atribuem a posse da igreja a herdadores, sendo a
apresentação do pároco confirmada pelo arcebispo de Braga,
informação que demonstra a fundação particular desta igreja
(herdadores = herdeiros dos funmelhante, em Lousada, ocorria com a
igreja de São Pedro de Caíde que tinha como anexa a de São Tiago
de Figueiró (Paços de Ferreira). Os bens da igreja de Alvarenga
(nos quais se incluía os rendimentos e bens de raiz da de Cernadelo)
constituíram a base patrimonial duma comenda nova da Ordem de
Cristo. Inserem-se neste contexto os marcos de delimitação
ornamentados com
a cruz de Cristo que ainda hoje existem em ambas as freguesias. Com o
Liberalismo o Estado apossou- se de todos os direitos de padroado,
pondo fim à existência de freguesias anexas. O Padre Carvalho
confirma tratar-se de igreja anexa à de Santa Maria de Alvarenga,
rendendo ambas 240 mil reis e avançando a existência de 32 fogos,
cerca de 160 habitantes (Costa, 1706:400).
Poucos
anos depois, nas Memórias Paroquiais de 1758, o vigário Crispim
Alvarez da Silva contabiliza 237 habitantes e refere que o pároco da
freguesia é aprezentação
do reitor de Santa Maria de Alvarenga e,
procurando alertar para as dificuldades económicas com que vivia,
faz um breve balanço das receitas: tem
de renda que paga o rendeiro ao vigário des mil reis tres
libras
de cera, dous alqueires de trigo, e setecentos e sincoenta. E trinta
alqueires de pão meado, e vinte e dous almudes de vinho. As obradas
que pagão os freguezes fazem sincoenta medidas, e hu campinho que hé
da rezidencia colheu o São Miguel passado quinze alqueires de pão,
e de vinho quinze almudes, o qual pão todo vendido a preço de doze
vinteis faz a soma de vinte e coatro mil reis, ajuntando o dinheiro
que paga o rendeiro cera, e trigo a todo são quarenta mil reis ao
certo, os incertos são muito lemitados porque a freguezia
hé pequena, e muita pobre- za, e finalmente della não pode viver
hu
parocho conforme pede a sua decencia (Capela,
Borralheiro e Matos, 2009:304). Em 1882, na sequência da
reestruturação das circunscrições eclesiásticas, e numa
tentativa de as fazer corresponder à divisão administrativa civil
(distritos), a paróquia de Cernadelo transitou da diocese de Braga
para a diocese do Porto.
ANÁLISE
ARQUITECTÓNICA
E
ARTÍSTICA
A
Igreja Matriz de Cernadelo (fig. 2) será uma construção ainda do
século XV, aproveitando elementos de uma igreja
anterior, seguramente medieval (muito
provavelmente na minha opinião (João Sousa) a nossa igreja terá
sido aproveitada do Mosteiro De Cernadelo).
É um edifício humilde, muito pequeno, mas equilibrado,
constituindo-se como arquétipo de um românico muito tardio e
resistente, rural e isolado. O portal Sul, embora de menor dimensão,
respeita o mesmo estilo. Junto deste, uma tampa sepulcral inserida na
reconstrução Quatrocentista do edifício. Planimetricamente a
igreja de Cernadelo é composta por nave única, transepto e
capela-mor rectangular, mais baixa do que a nave. Formalmente o
alçado principal, é composto por portal de arco de volta perfeita,
de aduelas largas e esquinas chanfradas. No seguimento do portal
abre-se um pequeno vão de iluminação, rasgado posteriormente,
como é
mencionado
na memória descritivada intervenção realizada em 1978. O remate é
feito por empena triangular, onde se denota claramente o aumento em
altura, que a igreja sofreu na década de 70, do século XX. A
sobrepujar a empena, ao centro, temos uma cruz latina em granito e
lateralmente, em cada uma das extremidades, dois pináculos de forma
piramidal, também em granito. No alçado lateral direito (fig. 3)
salienta-se o vão correspondente ao portal lateral, que segue os
parâmetros formais do portal principal, isto é, composta por arco
de volta perfeita, constituído também por aduelas largas e esquinas
chanfradas. Ainda neste alçado, encastrada, vemos uma
pedra, ornamentada
por uma cruz “tosca” envolta por dois círculos, este
que é o Símbolo da Freguesia e que não se pode perder, pois até
nas pedras de fronteira com as outras freguesias esta cruz esta
presente é símbolo
muito comum, presente nas tampas da escultura funerária da época
medieval. Muitos
arqueólogos que já investigaram a nossa magnifica igreja dizem que
esta
laje estaria disposta no exterior da igreja, servindo de tampa a uma
sepultura escavada no saibro do adro, prática corrente do
enterramento da época medieval e bastante presente nas igrejas e
mosteiros do território do Entre-Douro-e-Minho, mas
não aquela pedra é o Símbolo da Freguesia. No
alçado lateral esquerdo, não temos «qualquer
vão de entrada ou iluminação. Ainda no espaço da nave, a rematar
a empena é introduzida como remate central, também uma cruz latina
em
granito. O volume correspondente ao espaço da capela-mor (fig. 4),
também de forma rectangular, de menores dimensões e mais baixo que
a nave, exteriormente, revela algumas alterações resultantes das
intervenções de 1978 e anteriores. A parede fundeira terá tido um
vão de iluminação posteriormente fechado. Igualmente neste espaço,
conseguimos perceber claramente o aumento em altura.
Volumetricamente, a igreja de São Tiago de Cernadelo é composto por
mais dois volumes (transepto), dispostos lateralmente e que foram
construídos na campanha de obras de 1978, já mencionadas, pois a
igreja tornara-se pequena para o número de paroquianos da freguesia.
Num dos volumes está inserido o espaço da sacristia. Desta campanha
destacam-se as seguintes alterações: demolição da sacristia velha
(lado sul); criação de dois volumes que formam o transepto (o do
lado norte incorpora a sacristia nova); inclusão de dois arcos
ligeiramente abatidos no encontro das paredes dos novos volumes com a
capela-mor; o altar-mor colocado num patamar dois degraus acima do
transepto e três acima da nave. (fig. 5) Cerca de um ano antes,
conforme
é
descrito na Memória
Descritiva do
projecto de 1978, já se havia procedido à remoção do reboco
exterior das paredes, à colocação da cinta de betão, ao
lançamento da placa de cobertura, à execução das escadas do coro
e à abertura da janela da fachada (AEP, Memória
descritiva...).
A torre sineira deste templo paroquial encontra-se localizada na zona
posterior e ausente da arquitectura que corresponde ao espaço da
igreja. Formalmente apresenta-se como uma obra do século XVII /
XVIII e encontramos semelhanças estilísticas entre esta e a igreja,
através da utilização de remates que ornamentam esta torre, ou
seja, pináculos em forma piramidal. O interior também mudou muito
desde o século XVIII. Por essa altura o vigário fazia menção a
“três
altares, o mor hé de S. Thiago os dous de bayxo são hu de Nossa
Senhora, e outro do menino Deos, não tem naves, nem Irmandades; hé
pequena (Capela,
Borralheiro e Matos, 2009:304). Destes três altares resta apenas um,
(pois
com os anos o outro altar-mor apodreceu e ainda não foi comprado
outro)
o de Nossa Senhora do Rosário, sendo esta uma imagem apreciável
ainda do século XVII. O altar-mor já não é o mesmo. Através da
análise do património móvel da igreja paroquial de Cernadelo
(altar colateral, altar-mor e esculturas religiosas), denota-se as
diversas alterações que vieram desvirtuar a personalidade deste
templo, ou seja, parte das esculturas encontram-se bastante
repintadas sem que se consiga perceber o seu devido valor. O altar
colateral que formalmente apresenta semelhanças com um altar rococó,
encontrava- se desmantelado e segundo fontes orais, terá sido
deslocado para a igreja nos finais da década de 80, do século XX.
Neste altar (fig. 6) temos presente ao centro, num nicho, Nossa
Senhora com o Menino. Lateralmente, a imagem de São José com o
Menino e a
imagem
de São
Joaquim.
Ainda nesta mesma máquina retabular estão presentes as imagens do
Menino Deus e a imagem com a representação de Santa Ana e a Virgem.
Na parede correspondente ao arco cruzeiro (do lado direito) foi
aberto um pequeno nicho (devido
ao apodrecimento do outro alter-mor),
onde estão presentes as imagens de Santo António, São Sebastião,
São João, Santa Luzia e Nossa Senhora das Dores. Também estas
esculturas estão bastante adulteradas, devido a intervenções
realizadas sobre a policromia original. O altar-mor (fig. 7)
formalmente, corresponde a uma obra de transição entre o rococó e
o neoclássico (finais do século XVIII, princípios do século XIX),
isto é, no seu todo denotamos as formas diluídas e concheadas do
remate, próprio do estilo rococó, no entanto, o corpo do altar e a
base, já são bastantes mais contidos, como podemos verificar pela
adopção da coluna clássica e pelo trono eucarístico bastante
simplificado. Também segundo fontes orais da freguesia, a imagem de
São Tiago, orago da freguesia, e a imagem do Sagrado Coração de
Jesus, distribuídas no altar-mor, terão sido repintados
recentemente, o que levou a uma perda da sua policromia original, bem
como, algum do seu interesse artístico. É de realçar neste
conjunto, a imagem de Cristo Crucificado. Da vista da capela-mor para
a nave, ainda temos presente o coro-alto (fig. 8) em madeira, que
terá sido aumentado na mesma campanha de obras da década de 70, do
século XX. Do espólio iconográfico desta igreja é de salientar
uma custódia em prata dourada, que atualmente não se encontra no
espaço da igreja. Em 1923, esta igreja terá tido mais um conjunto
de reformulações, estas encontravam-se testemunhadas numas pinturas
sobre as paredes interiores do arco cruzeiro, já eliminadas, mas que
ficaram registadas em fotografia. O teor era o seguinte: «REFORMADA
ESTA IGREJA EM 1923 sendo o paroco Rev-DO
P.e
José
dos Santos Barroso Cernadelo 21-11-1923» Na parede oposta,
correspondente também ao arco cruzeiro, encontrava-se pintado o
seguinte testemunho: «TESTEMUNHO DE INFINDA GRATIDÃO a todos os
benfeitores desta igreja, especialmente á grande benemérita
a Exma
Snra
D.
Francisca dos Santos Bastos da Ilustre – Casa de Figueiredo - desta
Freguezia rende o PE
J.S.B»
Ao longo dos séculos, e por diversas razões, as igrejas paroquiais
que marcam a paisagem do concelho de Lousada, foram alvo de inúmeras
alterações, a Igreja de São Tiago de Cernadelo não foi exceção.
Estas transformações deviam-se muitas vezes à mudança dos cânones
litúrgicos, aos quais estes espaços deviam adaptar- se, motivos de
índole artística, de conservação e reconstrução, etc. A igreja
paroquial de São de Tiago de Cernadelo, no seu conjunto, é
caracterizada pelos seus traços vernaculares, marcadamente rural e
de cariz regional, é o espelho da freguesia onde se insere, ou seja,
um espaço bastante depurado, com fisionomia simplificada mas com
detalhes que ainda hoje nos levam a perceber a antiguidade deste
edifício.
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Fig. 1 - Foto antiga da igreja de Cernadelo, antes das reformas de 1977/78 |
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Fig. 2 - Vista da fachada principal |