Notas
para a história de Cernadelo.
Elementos
escultóricos da Casa do Casal.
No
Museu da Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães, encontram--se
depositadas duas peças escultóricas provenientes da freguesia de
Cernadelo (Lousada). Na Casa e Quintado Casal, na mesma freguesia,
conservam-se mais alguns elementos escultóricos na posse do Sr. Dr.
Mário Fonseca, proprietário da referida casa. As características
formais dos elementos e a singular concentração no local de onde
procedem suscitaram o interesse e motivaram o aprofundamento de
questões relacionadas com a sua origem, função e contexto
histórico. O levantamento bibliográfico e documental, então
iniciado, conduziu-nos a outros dados de grande relevo para
a freguesia, que poderão, inclusivamente, insinuar uma relação
próxima com as peças escultóricas mencionadas. O presente texto
não pretende ser conclusivo, uma vez que, depressa percebemos que
estávamos em presença de elementos de difícil interpretação,
sobre os quais não são conhecidas quaisquer fontes. A primeira
referência às peças, actualmente guardadas no Museu da Sociedade
Martins Sarmento, encontra- -se na Revista
de Guimarães,
de Julho-Dezembro do ano de 1971, na qual é dada nota da oferta
que o Ex.mo Sr.
Abílio
Pacheco Teixeira Rebelo de Carvalho fez à Sociedade, de uma curiosa
escultura antiga, em granito, que teria pertencido a um portal da
Casa do Casal, sita na freguesia de Sernadelo, do Concelho de Lousado
(sic)
(1971:301 e 302). Ainda no mesmo número volta-se a mencionar a
oferta (1971:318). No ano seguinte a Revista
de Guimarães acrescenta
alguns dados sobre as peças: com
data de 14 do corrente [Setembro],
foi recebida, com destino ao Museu, por oferta do Ex.mo Sr. Abílio
Pacheco Rebelo de Carvalho, uma pequena cruz românica, de pedra,
cimeira da demolida Igreja paroquial antiga, da freguesia de
Sernadelo, concelho de Lousada, possìvelmente, como diz o oferente,
«única prova material, existente deste velho templo, que foi
substituído por outro moderno». A interessante dádiva, que merece
todo o interesse, é muito de agradecer a este benemérito do nosso
Museu, pois, ainda não há muito, ofereceu também uma estatueta
antiga, de pedra, bastante curiosa (1972:282).
A 2.ª edição do Catálogo
do
mesmo museu, na secção de Epigrafia
Latina e de Escultura Antiga,
publicado pouco tempo antes, já inclui as duas peças com uma breve
descrição1.
A
identificação e a origem da denominada figura
votiva não
nos suscitam dúvidas. As descrições da Sociedade Martins Sarmento
coincidem com a peça escultórica e assemelham-se formalmente à
peça guardada na Casa do Casal. Quanto à segunda peça, designada
por cruz
românica e
inscrita no inventário com o n.º 206, a sua descrição não
combina com a imagem apresentada no site2.
Em nosso entender houve uma troca na fase de inventariação do
espólio que integrou a 2.ª edição do Catálogo.
O n.º 1673
do
inventário está associado a uma pedra com a cruz de Cristo gravada,
cuja forma e dimensões não apresentam quaisquer semelhanças com um
tímpano. Trata-se, com efeito, de um marco de delimitação da
freguesia4
que,
juntamente com Alvarenga (Lousada), constituía uma comenda nova da
Ordem de Cristo, não podendo ser, por isso, anterior ao primeiro
quartel do século XVI. Assim, ao n.º 206 deverá corresponder o
marco e ao n.º 167 o tímpano da igreja de São Paio (Guimarães).
Logo no primeiro contacto com a peça manifestáramos a nossa
perplexidade perante um elemento arquitectónico ao qual
corresponderia um edifício de grandes dimensões, sem que
subsistissem quaisquer registos na documentação, vestígios físicos
ou memória colectiva em Cernadelo. O próprio Coronel Mário Cardozo
revela alguma hesitação na descrição que integra o Catálogo
ao
não mencionar a informaçã de que a cruz seria cimeira
da
antiga igreja de Cernadelo, desvalorizando o relato do oferente.
Resta-nos subsidiar o inventário dos marcos de delimitação e
canalizar a nossa análise para as restantes esculturas. Antes ainda
importa assinalar alguns dados que poderão contribuir para o
enquadramento histórico dos elementos escultóricos. A presença
destes vestígios em Cernadelo logo suscitou a interrogação acerca
da sua proveniência, da edificação que, possivelmente, os integrou
e da tipologia e localização dessa suposta construção, partindo
do princípio plausível de que serão todos procedentes do mesmo
local. O proprietário da casa e a população apenas conhecem a
actual localização das peças, sem que possam indicar se as mesmas
foram exumadas durante trabalhos agrícolas na quinta ou
transportadas de outro local. A pouca documentação de que dispomos
dá-nos, contudo, algumas pistas que deverão ser exploradas e
aferidas. Um documento datado de 1059 e coligido pelo Abade de
Tagilde nos Vimaranis
Monumenta Historica (VMH)
sob o n.º 45, que consiste num inventário de bens do Mosteiro de
Guimarães,menciona o Monasterio
de zernadelo et ecclesia sancto petro et ecclesia sancto iacobo
(Vimaranis…,
1908:49). Miguel de Oliveira inclui este cenóbio no seu inventário
de mosteiros antigos do norte de Portugal, localizando-o em Cernadelo
(1950:187) tal como Domingos Moreira que ainda acrescenta que a
igreja de S. Pedro está actualmente representada no lugar de S.
Pedro e a de Santiago no orago (1984:46).
José Mattoso e Avelino de Jesus da Costa não fazem qualquer
referência a este mosteiro. O primeiro porque se debruça só sobre
a diocese do Porto, que, apesar de não apresentar no século XI os
limites actuais, já por essa altura não integraria Cernadelo5
(Mattoso,
2002:13-54). O segundo porque analisa apenas a parte do Censual
do bispo D. Pedro respeitante ao território entre Lima e Ave. A
parte do documento relativa ao território no qual poderíamos
encontrar Cernadelo não foi encontrada (Costa, 1959:2). Já José
Marques, quando inventaria as instituições monásticas entre os
anos 1000 e 1200, e tomando por base o Doc. n.º 420 do Diplomata
et Chartae (o
mesmo de VMH, n.º 45), associa o monasterio
zernadelo a
um mosteiro situado em Serzedelo (Póvoa do Lanhoso) (1988:609-627)
(1990a:322), no entanto, noutra ocasião, já relaciona o topónimo
medievo com a actual freguesia de Cernadelo (1990b:11). Nas
Inquirições já não existe qualquer referência ao mosteiro, no
entanto, nas de 1258, é mencionada uma igreja erigida num reguengo
(Lopes, 2004:209), que poderá corresponder à igreja de São Pedro
aludida no documento de 1059. A fundação particular de igrejas e
mosteiros foi muito comum ao longo da Reconquista. Para além de
servir interesses próprios dos senhores das terras, respondiam ao
incremento da população e definiram o modelo de organização
social e administrativo do território recentemente libertado. Muitas
destas igrejas particulares ascenderam à categoria de paroquiais,
enquanto outras foram abrangidas pela sede de paróquia e passaram a
ermidas. Com os mosteiros sucedeu algo idêntico. Muitos extinguiram-
se quase sem deixar testemunhos da sua existência, outros foram
reduzidos a igrejas, convertendo- se em centros paroquiais. A falta
de recursos próprios, os abusos dos padroeiros e a mediocridade do
clero foram alguns dos factores que mais contribuíram para a
extinção ou redução de mosteiros e igrejas (cf. Oliveira,
1950:93-105). Apesar da oposição da estrutura eclesiástica, os
mosteiros particulares proliferaram e no século XI eram numerosos. A
reforma cluniacense impôs-se gradualmente e exerceu forte oposição
à sua continuidade. Enfraquecidos pelas limitações impostas pelo
recrutamento – feito exclusivamente dentro das famílias patronais
– e pelos fracos recursos, muitos não sobreviverão aos primeiros
anos do século XII e outros
serão
doados a instituições monásticas mais organizadas (Mattoso,
2002:133). Será arriscado assegurar que tanto a igreja de São Pedro
como o mosteiro de Cernadelo tiveram fundação particular, no
entanto o contexto histórico permite aceitar esta proposta como
plausível. Mesmo a igreja de São Tiago poderia tratar-se de um
templo de origem particular, que, beneficiando de um clero mais
activo, de maiores recursos ou de um orago mais popular, fosse,
posteriormente, elevada a sede paroquial. Pelos factores opostos a
outra igreja acabou, possivelmente, por ser reduzida a capela e
votada a um progressivo abandono, que terá resultado no seu
desaparecimento, permanecendo, contudo, o hagiotopónimo até aos
dias de hoje. O mosteiro, através da interpretação que o doc. n.º
45 dos Vimaranis
Monumenta Historica nos
permite6,
terá pertencido a um tal de Vasco Forjaz, que o doou ao Mosteiro de
Guimarães. Após a doação, o declínio acentuou-se, possivelmente
com a transferência do escasso clero que o compunha e das possíveis
propriedades para o cenóbio vimaranense. Nunca tendo exercido grande
importância sobre a comunidade, rapidamente a sua memória se
obliterou. Apesar de já se tratar de uma referência moderna, não
podemos deixar de ponderar o que nos diz o abade de Cernadelo nas
Memórias Paroquiais: Está
esta freiguezia situada em hu valle de hum monte chamado de Santo
Lebres, corrupto vocabolo, porque antiguamente dizerem estivera hua
cappella de Santo Euzebio, no alto do ditto monte (Capela,
Borralheiro e Matos, 2009:304) Desta tradição decorre,
possivelmente, a identificação de uma das imagens com o papa
Eusébio I (Gomes, 1996:86), afirmação que resistimos a aceitar,
por falta de argumentação sustentada. Não deixa, contudo, de
constituir mais uma referência hagiotoponímica com algum
significado, cuja relação com os vestígios identificados poderá
ser explorada. No seguimento da pesquisa documental e bibliográfica,
partimos para o trabalho de campo. Tivemos um primeiro contacto com
as peças que se encontram no museu Martins Sarmento e procedemos a
uma primeira análise formal. Uma das obras é uma peça escultórica
de vulto (fig. 1), que parece estar numa posição de oração ou até
mesmo de contemplação. Um dos indicadores dessa expressão é
demonstrada pela forma como são esculpidas as mãos, ou seja, parece
indicar-nos um gesto de meditação, reforçado também pela posição
em que o volume do corpo se encontra. A imagem parece estar inclinada
ou até mesmo ajoelhada, demonstrando a sua fisionomia uma postura
tímida. Formalmente apresenta um recorte que nos parece pouco
erudito, passando um aspecto rudimentar, devido à
desproporcionalidade em relação ao resto do volume. Parece estar
envolta por um manto unido ao centro por uma faixa. Apresenta um
rosto delineado, sendo o contorno dos olhos, do nariz e da boca
bastante pronunciados. Outra particularidade interessante desta peça
é a forma como é trabalhado o seu cabelo, demonstrando algum
cuidado no seu tratamento. Evidencia um pescoço bastante marcado, ou
então poder ser a representação de um colarinho nessa zona. Outro
pormenor encontra-se na zona inferior da peça que demonstra um
recorte ou entalhe muito bem definido. No seu todo esta escultura
indica um trabalho rígido que transparece uma execução vernacular
do artista. A segunda peça é um elemento em granito em forma de
tímpano com uma cruz esculpida ao centro e envolta por um círculo,
elemento que surge algumas vezes nos portais das igrejas medievais
(fig. 2). Apresenta as duas faces esculpidas, com a mesma
representação em ambos os lados. Ponderamos a hipótese que este
elemento
tivesse como objectivo ser vazado, característica comum também nos
portais românicos. Pensamos que será um pouco precoce afirmar que
esta peça seja de facto proveniente da freguesia de Cernadelo,
devido a todas as ambiguidades e dúvidas que os relatos presentes
nos inventários da Sociedade Martins Sarmento nos levantaram e que
tentaremos esclarecer numa segunda notícia. O restante espólio
encontra-se ainda na propriedade da Casa do Casal. Uma escultura de
vulto e uma espécie de silhar ou pedra em forma rectangular. Este
elemento tem gravado em uma das faces, um rosto que nos parece
transparecer feições de cariz religioso e talvez com uma função
apotropaica, ou seja, pode ser visto como um símbolo que tem a
função de afastar o mal. Esta ideia de utilização de figuras
religiosas e fantásticas foi um tema muito apreciado na arte
românica, constantemente presente nas fachadas e portais da nossa
arquitectura românica, com o significado de proteger os nossos
templos religiosos das desgraças do mundo terreno. Estas
representações tinham também a missão de passar uma mensagem
cristã. (fig. 3). A segunda peça, também uma escultura de vulto
(fig.4), apresenta características semelhantes no tratamento do
rosto comparativamente com a outra escultura depositada no Museu. A
zona do tronco é mais pronunciada, parece também receber um manto,
ou noutra perspectiva, reforçada pela análise de José Manuel
Tedim, que gentilmente correspondeu ao nosso pedido de análise, a
peça em causa poderá sugerir, de forma estilizada, as asas de um
anjo. Aponta ser uma figura coroada e demonstra uma expressão mais
altiva, relativamente à imagem depositada no Museu. Outro aspecto
curioso é o medalhão que apresenta na zona do peito com uma cruz
gravada, que mais uma vez reforça a ideia da transmissão de uma
mensagem de cariz religioso. Ambas as peças parecem ter o mesmo
tratamento. Todos os elementos escultóricos denunciam,
características que nos levam a apontar terem sido executadas pela
mesma mão. Existem semelhanças entre as peças principalmente no
trabalho do manto. É utilizada a mesma técnica no trabalho dos
rostos, sobressaindo a mesma noção rígida e vernacular da
personalidade das peças, que não podemos deixar de mencionar que
poderá ser uma intenção propositada do próprio artista. Por todas
estas similitudes formais, achamos que estas duas peças terão sido
realizadas com o objectivo de serem observadas juntas, isto é, como
uma peça única, pois, na nossa opinião, deverão representar uma
cena religiosa, a qual só através da sua integração conseguiremos
perceber a sua função iconográfica, que tentaremos desenvolver
posteriormente. No entanto, achamos que, pela análise formal
realizada a ambas as peças, poderão ser elementos de uma cena
alusiva à Anunciação
da Virgem,
ou seja, ambas as figuras, apesar de até ao momento não apurarmos
claramente os símbolos iconográficos, têm características que nos
remetem para essa temática religiosa. Segundo José Manuel Tedim,
ambas as figuras poderão representar uma Cena da Anunciação da
Virgem, pois, se repararmos, uma das figuras tem as mãos postas
enquanto a outra sugere de forma estilizada as asas de um anjo.
Quanto
ao elemento em forma de tímpano, com cruz gravada e envolta por um
círculo parece-nos ter um tratamento diferente, mais cuidado em
relação às restantes peças, ou seja, não denotamos
características comuns ao nível formal, assim como, ao nível dos
materiais. O tipo de pedra utilizado nesta peça parecia ser composta
por um grão diferente. O Gabinete do Património Histórico ainda se
encontra numa primeira fase de pesquisa, que consistiu na
inventariação das peças, levantamento bibliográfico e trabalho de
campo7.
Uma segunda fase da pesquisa tentará apurar a proveniência destas
peças, assim como, continuar com o estudo formal e iconográfico das
obras mencionadas. No entanto, apesar da investigação em causa
ainda estar no início e pouco elucidar sobre a proveniência e
simbologia destes elementos, achamos importante registar nesta
primeira notícia todos os dados que conseguimos apurar até ao
momento, assim como, fazer um apanhado sobre outras questões que
esta investigação nos levantou.
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Figura 1 - Escultura de vulto depositada no | Museu Martins Sarmento (88 x 36cm) |
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Figura 2 - Elemento em forma de tímpano com cruz gravada | (179 x 95cm) |
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Figura 3 - Pedra rectangular ou silhar com figuração presente | na Casa do Casal (41 x 46cm) |
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Figura 4 - Escultura de vulto a encimar um pedestal na | Casa do Casal (123 x 43cm) |
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