quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Notas para a história de Cernadelo.

Elementos escultóricos da Casa do Casal.

No Museu da Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães, encontram--se depositadas duas peças escultóricas provenientes da freguesia de Cernadelo (Lousada). Na Casa e Quintado Casal, na mesma freguesia, conservam-se mais alguns elementos escultóricos na posse do Sr. Dr. Mário Fonseca, proprietário da referida casa. As características formais dos elementos e a singular concentração no local de onde procedem suscitaram o interesse e motivaram o aprofundamento de questões relacionadas com a sua origem, função e contexto histórico. O levantamento bibliográfico e documental, então iniciado, conduziu-nos a outros dados de grande relevo para a freguesia, que poderão, inclusivamente, insinuar uma relação próxima com as peças escultóricas mencionadas. O presente texto não pretende ser conclusivo, uma vez que, depressa percebemos que estávamos em presença de elementos de difícil interpretação, sobre os quais não são conhecidas quaisquer fontes. A primeira referência às peças, actualmente guardadas no Museu da Sociedade Martins Sarmento, encontra- -se na Revista de Guimarães, de Julho-Dezembro do ano de 1971, na qual é dada nota da oferta que o Ex.mo Sr. Abílio Pacheco Teixeira Rebelo de Carvalho fez à Sociedade, de uma curiosa escultura antiga, em granito, que teria pertencido a um portal da Casa do Casal, sita na freguesia de Sernadelo, do Concelho de Lousado (sic) (1971:301 e 302). Ainda no mesmo número volta-se a mencionar a oferta (1971:318). No ano seguinte a Revista de Guimarães acrescenta alguns dados sobre as peças: com data de 14 do corrente [Setembro], foi recebida, com destino ao Museu, por oferta do Ex.mo Sr. Abílio Pacheco Rebelo de Carvalho, uma pequena cruz românica, de pedra, cimeira da demolida Igreja paroquial antiga, da freguesia de Sernadelo, concelho de Lousada, possìvelmente, como diz o oferente, «única prova material, existente deste velho templo, que foi substituído por outro moderno». A interessante dádiva, que merece todo o interesse, é muito de agradecer a este benemérito do nosso Museu, pois, ainda não há muito, ofereceu também uma estatueta antiga, de pedra, bastante curiosa (1972:282). A 2.ª edição do Catálogo do mesmo museu, na secção de Epigrafia Latina e de Escultura Antiga, publicado pouco tempo antes, já inclui as duas peças com uma breve descrição1. A identificação e a origem da denominada figura votiva não nos suscitam dúvidas. As descrições da Sociedade Martins Sarmento coincidem com a peça escultórica e assemelham-se formalmente à peça guardada na Casa do Casal. Quanto à segunda peça, designada por cruz românica e inscrita no inventário com o n.º 206, a sua descrição não combina com a imagem apresentada no site2. Em nosso entender houve uma troca na fase de inventariação do espólio que integrou a 2.ª edição do Catálogo. O n.º 1673 do inventário está associado a uma pedra com a cruz de Cristo gravada, cuja forma e dimensões não apresentam quaisquer semelhanças com um tímpano. Trata-se, com efeito, de um marco de delimitação da freguesia4 que, juntamente com Alvarenga (Lousada), constituía uma comenda nova da Ordem de Cristo, não podendo ser, por isso, anterior ao primeiro quartel do século XVI. Assim, ao n.º 206 deverá corresponder o marco e ao n.º 167 o tímpano da igreja de São Paio (Guimarães). Logo no primeiro contacto com a peça manifestáramos a nossa perplexidade perante um elemento arquitectónico ao qual corresponderia um edifício de grandes dimensões, sem que subsistissem quaisquer registos na documentação, vestígios físicos ou memória colectiva em Cernadelo. O próprio Coronel Mário Cardozo revela alguma hesitação na descrição que integra o Catálogo ao não mencionar a informaçã de que a cruz seria cimeira
da antiga igreja de Cernadelo, desvalorizando o relato do oferente. Resta-nos subsidiar o inventário dos marcos de delimitação e canalizar a nossa análise para as restantes esculturas. Antes ainda importa assinalar alguns dados que poderão contribuir para o enquadramento histórico dos elementos escultóricos. A presença destes vestígios em Cernadelo logo suscitou a interrogação acerca da sua proveniência, da edificação que, possivelmente, os integrou e da tipologia e localização dessa suposta construção, partindo do princípio plausível de que serão todos procedentes do mesmo local. O proprietário da casa e a população apenas conhecem a actual localização das peças, sem que possam indicar se as mesmas foram exumadas durante trabalhos agrícolas na quinta ou transportadas de outro local. A pouca documentação de que dispomos dá-nos, contudo, algumas pistas que deverão ser exploradas e aferidas. Um documento datado de 1059 e coligido pelo Abade de Tagilde nos Vimaranis Monumenta Historica (VMH) sob o n.º 45, que consiste num inventário de bens do Mosteiro de Guimarães,menciona o Monasterio de zernadelo et ecclesia sancto petro et ecclesia sancto iacobo (Vimaranis…, 1908:49). Miguel de Oliveira inclui este cenóbio no seu inventário de mosteiros antigos do norte de Portugal, localizando-o em Cernadelo (1950:187) tal como Domingos Moreira que ainda acrescenta que a igreja de S. Pedro está actualmente representada no lugar de S. Pedro e a de Santiago no orago (1984:46). José Mattoso e Avelino de Jesus da Costa não fazem qualquer referência a este mosteiro. O primeiro porque se debruça só sobre a diocese do Porto, que, apesar de não apresentar no século XI os limites actuais, já por essa altura não integraria Cernadelo5 (Mattoso, 2002:13-54). O segundo porque analisa apenas a parte do Censual do bispo D. Pedro respeitante ao território entre Lima e Ave. A parte do documento relativa ao território no qual poderíamos encontrar Cernadelo não foi encontrada (Costa, 1959:2). Já José Marques, quando inventaria as instituições monásticas entre os anos 1000 e 1200, e tomando por base o Doc. n.º 420 do Diplomata et Chartae (o mesmo de VMH, n.º 45), associa o monasterio zernadelo a um mosteiro situado em Serzedelo (Póvoa do Lanhoso) (1988:609-627) (1990a:322), no entanto, noutra ocasião, já relaciona o topónimo medievo com a actual freguesia de Cernadelo (1990b:11). Nas Inquirições já não existe qualquer referência ao mosteiro, no entanto, nas de 1258, é mencionada uma igreja erigida num reguengo (Lopes, 2004:209), que poderá corresponder à igreja de São Pedro aludida no documento de 1059. A fundação particular de igrejas e mosteiros foi muito comum ao longo da Reconquista. Para além de servir interesses próprios dos senhores das terras, respondiam ao incremento da população e definiram o modelo de organização social e administrativo do território recentemente libertado. Muitas destas igrejas particulares ascenderam à categoria de paroquiais, enquanto outras foram abrangidas pela sede de paróquia e passaram a ermidas. Com os mosteiros sucedeu algo idêntico. Muitos extinguiram- se quase sem deixar testemunhos da sua existência, outros foram reduzidos a igrejas, convertendo- se em centros paroquiais. A falta de recursos próprios, os abusos dos padroeiros e a mediocridade do clero foram alguns dos factores que mais contribuíram para a extinção ou redução de mosteiros e igrejas (cf. Oliveira, 1950:93-105). Apesar da oposição da estrutura eclesiástica, os mosteiros particulares proliferaram e no século XI eram numerosos. A reforma cluniacense impôs-se gradualmente e exerceu forte oposição à sua continuidade. Enfraquecidos pelas limitações impostas pelo recrutamento – feito exclusivamente dentro das famílias patronais – e pelos fracos recursos, muitos não sobreviverão aos primeiros anos do século XII e outros

serão doados a instituições monásticas mais organizadas (Mattoso, 2002:133). Será arriscado assegurar que tanto a igreja de São Pedro como o mosteiro de Cernadelo tiveram fundação particular, no entanto o contexto histórico permite aceitar esta proposta como plausível. Mesmo a igreja de São Tiago poderia tratar-se de um templo de origem particular, que, beneficiando de um clero mais activo, de maiores recursos ou de um orago mais popular, fosse, posteriormente, elevada a sede paroquial. Pelos factores opostos a outra igreja acabou, possivelmente, por ser reduzida a capela e votada a um progressivo abandono, que terá resultado no seu desaparecimento, permanecendo, contudo, o hagiotopónimo até aos dias de hoje. O mosteiro, através da interpretação que o doc. n.º 45 dos Vimaranis Monumenta Historica nos permite6, terá pertencido a um tal de Vasco Forjaz, que o doou ao Mosteiro de Guimarães. Após a doação, o declínio acentuou-se, possivelmente com a transferência do escasso clero que o compunha e das possíveis propriedades para o cenóbio vimaranense. Nunca tendo exercido grande importância sobre a comunidade, rapidamente a sua memória se obliterou. Apesar de já se tratar de uma referência moderna, não podemos deixar de ponderar o que nos diz o abade de Cernadelo nas Memórias Paroquiais: Está esta freiguezia situada em hu valle de hum monte chamado de Santo Lebres, corrupto vocabolo, porque antiguamente dizerem estivera hua cappella de Santo Euzebio, no alto do ditto monte (Capela, Borralheiro e Matos, 2009:304) Desta tradição decorre, possivelmente, a identificação de uma das imagens com o papa Eusébio I (Gomes, 1996:86), afirmação que resistimos a aceitar, por falta de argumentação sustentada. Não deixa, contudo, de constituir mais uma referência hagiotoponímica com algum significado, cuja relação com os vestígios identificados poderá ser explorada. No seguimento da pesquisa documental e bibliográfica, partimos para o trabalho de campo. Tivemos um primeiro contacto com as peças que se encontram no museu Martins Sarmento e procedemos a uma primeira análise formal. Uma das obras é uma peça escultórica de vulto (fig. 1), que parece estar numa posição de oração ou até mesmo de contemplação. Um dos indicadores dessa expressão é demonstrada pela forma como são esculpidas as mãos, ou seja, parece indicar-nos um gesto de meditação, reforçado também pela posição em que o volume do corpo se encontra. A imagem parece estar inclinada ou até mesmo ajoelhada, demonstrando a sua fisionomia uma postura tímida. Formalmente apresenta um recorte que nos parece pouco erudito, passando um aspecto rudimentar, devido à desproporcionalidade em relação ao resto do volume. Parece estar envolta por um manto unido ao centro por uma faixa. Apresenta um rosto delineado, sendo o contorno dos olhos, do nariz e da boca bastante pronunciados. Outra particularidade interessante desta peça é a forma como é trabalhado o seu cabelo, demonstrando algum cuidado no seu tratamento. Evidencia um pescoço bastante marcado, ou então poder ser a representação de um colarinho nessa zona. Outro pormenor encontra-se na zona inferior da peça que demonstra um recorte ou entalhe muito bem definido. No seu todo esta escultura indica um trabalho rígido que transparece uma execução vernacular do artista. A segunda peça é um elemento em granito em forma de tímpano com uma cruz esculpida ao centro e envolta por um círculo, elemento que surge algumas vezes nos portais das igrejas medievais (fig. 2). Apresenta as duas faces esculpidas, com a mesma representação em ambos os lados. Ponderamos a hipótese que este elemento tivesse como objectivo ser vazado, característica comum também nos portais românicos. Pensamos que será um pouco precoce afirmar que esta peça seja de facto proveniente da freguesia de Cernadelo, devido a todas as ambiguidades e dúvidas que os relatos presentes nos inventários da Sociedade Martins Sarmento nos levantaram e que tentaremos esclarecer numa segunda notícia. O restante espólio encontra-se ainda na propriedade da Casa do Casal. Uma escultura de vulto e uma espécie de silhar ou pedra em forma rectangular. Este elemento tem gravado em uma das faces, um rosto que nos parece transparecer feições de cariz religioso e talvez com uma função apotropaica, ou seja, pode ser visto como um símbolo que tem a função de afastar o mal. Esta ideia de utilização de figuras religiosas e fantásticas foi um tema muito apreciado na arte românica, constantemente presente nas fachadas e portais da nossa arquitectura românica, com o significado de proteger os nossos templos religiosos das desgraças do mundo terreno. Estas representações tinham também a missão de passar uma mensagem cristã. (fig. 3). A segunda peça, também uma escultura de vulto (fig.4), apresenta características semelhantes no tratamento do rosto comparativamente com a outra escultura depositada no Museu. A zona do tronco é mais pronunciada, parece também receber um manto, ou noutra perspectiva, reforçada pela análise de José Manuel Tedim, que gentilmente correspondeu ao nosso pedido de análise, a peça em causa poderá sugerir, de forma estilizada, as asas de um anjo. Aponta ser uma figura coroada e demonstra uma expressão mais altiva, relativamente à imagem depositada no Museu. Outro aspecto curioso é o medalhão que apresenta na zona do peito com uma cruz gravada, que mais uma vez reforça a ideia da transmissão de uma mensagem de cariz religioso. Ambas as peças parecem ter o mesmo tratamento. Todos os elementos escultóricos denunciam, características que nos levam a apontar terem sido executadas pela mesma mão. Existem semelhanças entre as peças principalmente no trabalho do manto. É utilizada a mesma técnica no trabalho dos rostos, sobressaindo a mesma noção rígida e vernacular da personalidade das peças, que não podemos deixar de mencionar que poderá ser uma intenção propositada do próprio artista. Por todas estas similitudes formais, achamos que estas duas peças terão sido realizadas com o objectivo de serem observadas juntas, isto é, como uma peça única, pois, na nossa opinião, deverão representar uma cena religiosa, a qual só através da sua integração conseguiremos perceber a sua função iconográfica, que tentaremos desenvolver posteriormente. No entanto, achamos que, pela análise formal realizada a ambas as peças, poderão ser elementos de uma cena alusiva à Anunciação da Virgem, ou seja, ambas as figuras, apesar de até ao momento não apurarmos claramente os símbolos iconográficos, têm características que nos remetem para essa temática religiosa. Segundo José Manuel Tedim, ambas as figuras poderão representar uma Cena da Anunciação da Virgem, pois, se repararmos, uma das figuras tem as mãos postas enquanto a outra sugere de forma estilizada as asas de um anjo. Quanto ao elemento em forma de tímpano, com cruz gravada e envolta por um círculo parece-nos ter um tratamento diferente, mais cuidado em relação às restantes peças, ou seja, não denotamos características comuns ao nível formal, assim como, ao nível dos materiais. O tipo de pedra utilizado nesta peça parecia ser composta por um grão diferente. O Gabinete do Património Histórico ainda se encontra numa primeira fase de pesquisa, que consistiu na inventariação das peças, levantamento bibliográfico e trabalho de campo7. Uma segunda fase da pesquisa tentará apurar a proveniência destas peças, assim como, continuar com o estudo formal e iconográfico das obras mencionadas. No entanto, apesar da investigação em causa ainda estar no início e pouco elucidar sobre a proveniência e simbologia destes elementos, achamos importante registar nesta primeira notícia todos os dados que conseguimos apurar até ao momento, assim como, fazer um apanhado sobre outras questões que esta investigação nos levantou.
Figura 1 - Escultura de vulto depositada no Museu Martins Sarmento (88 x 36cm)

Figura 2 - Elemento em forma de tímpano 
com cruz gravada
(179 x 95cm)

Figura 3 - Pedra rectangular ou silhar com figuração presentena Casa do Casal (41 x 46cm)

Figura 4 - Escultura de vulto a encimar um pedestal na Casa do Casal (123 x 43cm)

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