quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Os Marcos Da Ordem De Cristo 



Notas para a história de Cernadelo.

Elementos escultóricos da Casa do Casal.

No Museu da Sociedade Martins Sarmento, em Guimarães, encontram--se depositadas duas peças escultóricas provenientes da freguesia de Cernadelo (Lousada). Na Casa e Quintado Casal, na mesma freguesia, conservam-se mais alguns elementos escultóricos na posse do Sr. Dr. Mário Fonseca, proprietário da referida casa. As características formais dos elementos e a singular concentração no local de onde procedem suscitaram o interesse e motivaram o aprofundamento de questões relacionadas com a sua origem, função e contexto histórico. O levantamento bibliográfico e documental, então iniciado, conduziu-nos a outros dados de grande relevo para a freguesia, que poderão, inclusivamente, insinuar uma relação próxima com as peças escultóricas mencionadas. O presente texto não pretende ser conclusivo, uma vez que, depressa percebemos que estávamos em presença de elementos de difícil interpretação, sobre os quais não são conhecidas quaisquer fontes. A primeira referência às peças, actualmente guardadas no Museu da Sociedade Martins Sarmento, encontra- -se na Revista de Guimarães, de Julho-Dezembro do ano de 1971, na qual é dada nota da oferta que o Ex.mo Sr. Abílio Pacheco Teixeira Rebelo de Carvalho fez à Sociedade, de uma curiosa escultura antiga, em granito, que teria pertencido a um portal da Casa do Casal, sita na freguesia de Sernadelo, do Concelho de Lousado (sic) (1971:301 e 302). Ainda no mesmo número volta-se a mencionar a oferta (1971:318). No ano seguinte a Revista de Guimarães acrescenta alguns dados sobre as peças: com data de 14 do corrente [Setembro], foi recebida, com destino ao Museu, por oferta do Ex.mo Sr. Abílio Pacheco Rebelo de Carvalho, uma pequena cruz românica, de pedra, cimeira da demolida Igreja paroquial antiga, da freguesia de Sernadelo, concelho de Lousada, possìvelmente, como diz o oferente, «única prova material, existente deste velho templo, que foi substituído por outro moderno». A interessante dádiva, que merece todo o interesse, é muito de agradecer a este benemérito do nosso Museu, pois, ainda não há muito, ofereceu também uma estatueta antiga, de pedra, bastante curiosa (1972:282). A 2.ª edição do Catálogo do mesmo museu, na secção de Epigrafia Latina e de Escultura Antiga, publicado pouco tempo antes, já inclui as duas peças com uma breve descrição1. A identificação e a origem da denominada figura votiva não nos suscitam dúvidas. As descrições da Sociedade Martins Sarmento coincidem com a peça escultórica e assemelham-se formalmente à peça guardada na Casa do Casal. Quanto à segunda peça, designada por cruz românica e inscrita no inventário com o n.º 206, a sua descrição não combina com a imagem apresentada no site2. Em nosso entender houve uma troca na fase de inventariação do espólio que integrou a 2.ª edição do Catálogo. O n.º 1673 do inventário está associado a uma pedra com a cruz de Cristo gravada, cuja forma e dimensões não apresentam quaisquer semelhanças com um tímpano. Trata-se, com efeito, de um marco de delimitação da freguesia4 que, juntamente com Alvarenga (Lousada), constituía uma comenda nova da Ordem de Cristo, não podendo ser, por isso, anterior ao primeiro quartel do século XVI. Assim, ao n.º 206 deverá corresponder o marco e ao n.º 167 o tímpano da igreja de São Paio (Guimarães). Logo no primeiro contacto com a peça manifestáramos a nossa perplexidade perante um elemento arquitectónico ao qual corresponderia um edifício de grandes dimensões, sem que subsistissem quaisquer registos na documentação, vestígios físicos ou memória colectiva em Cernadelo. O próprio Coronel Mário Cardozo revela alguma hesitação na descrição que integra o Catálogo ao não mencionar a informaçã de que a cruz seria cimeira
da antiga igreja de Cernadelo, desvalorizando o relato do oferente. Resta-nos subsidiar o inventário dos marcos de delimitação e canalizar a nossa análise para as restantes esculturas. Antes ainda importa assinalar alguns dados que poderão contribuir para o enquadramento histórico dos elementos escultóricos. A presença destes vestígios em Cernadelo logo suscitou a interrogação acerca da sua proveniência, da edificação que, possivelmente, os integrou e da tipologia e localização dessa suposta construção, partindo do princípio plausível de que serão todos procedentes do mesmo local. O proprietário da casa e a população apenas conhecem a actual localização das peças, sem que possam indicar se as mesmas foram exumadas durante trabalhos agrícolas na quinta ou transportadas de outro local. A pouca documentação de que dispomos dá-nos, contudo, algumas pistas que deverão ser exploradas e aferidas. Um documento datado de 1059 e coligido pelo Abade de Tagilde nos Vimaranis Monumenta Historica (VMH) sob o n.º 45, que consiste num inventário de bens do Mosteiro de Guimarães,menciona o Monasterio de zernadelo et ecclesia sancto petro et ecclesia sancto iacobo (Vimaranis…, 1908:49). Miguel de Oliveira inclui este cenóbio no seu inventário de mosteiros antigos do norte de Portugal, localizando-o em Cernadelo (1950:187) tal como Domingos Moreira que ainda acrescenta que a igreja de S. Pedro está actualmente representada no lugar de S. Pedro e a de Santiago no orago (1984:46). José Mattoso e Avelino de Jesus da Costa não fazem qualquer referência a este mosteiro. O primeiro porque se debruça só sobre a diocese do Porto, que, apesar de não apresentar no século XI os limites actuais, já por essa altura não integraria Cernadelo5 (Mattoso, 2002:13-54). O segundo porque analisa apenas a parte do Censual do bispo D. Pedro respeitante ao território entre Lima e Ave. A parte do documento relativa ao território no qual poderíamos encontrar Cernadelo não foi encontrada (Costa, 1959:2). Já José Marques, quando inventaria as instituições monásticas entre os anos 1000 e 1200, e tomando por base o Doc. n.º 420 do Diplomata et Chartae (o mesmo de VMH, n.º 45), associa o monasterio zernadelo a um mosteiro situado em Serzedelo (Póvoa do Lanhoso) (1988:609-627) (1990a:322), no entanto, noutra ocasião, já relaciona o topónimo medievo com a actual freguesia de Cernadelo (1990b:11). Nas Inquirições já não existe qualquer referência ao mosteiro, no entanto, nas de 1258, é mencionada uma igreja erigida num reguengo (Lopes, 2004:209), que poderá corresponder à igreja de São Pedro aludida no documento de 1059. A fundação particular de igrejas e mosteiros foi muito comum ao longo da Reconquista. Para além de servir interesses próprios dos senhores das terras, respondiam ao incremento da população e definiram o modelo de organização social e administrativo do território recentemente libertado. Muitas destas igrejas particulares ascenderam à categoria de paroquiais, enquanto outras foram abrangidas pela sede de paróquia e passaram a ermidas. Com os mosteiros sucedeu algo idêntico. Muitos extinguiram- se quase sem deixar testemunhos da sua existência, outros foram reduzidos a igrejas, convertendo- se em centros paroquiais. A falta de recursos próprios, os abusos dos padroeiros e a mediocridade do clero foram alguns dos factores que mais contribuíram para a extinção ou redução de mosteiros e igrejas (cf. Oliveira, 1950:93-105). Apesar da oposição da estrutura eclesiástica, os mosteiros particulares proliferaram e no século XI eram numerosos. A reforma cluniacense impôs-se gradualmente e exerceu forte oposição à sua continuidade. Enfraquecidos pelas limitações impostas pelo recrutamento – feito exclusivamente dentro das famílias patronais – e pelos fracos recursos, muitos não sobreviverão aos primeiros anos do século XII e outros

serão doados a instituições monásticas mais organizadas (Mattoso, 2002:133). Será arriscado assegurar que tanto a igreja de São Pedro como o mosteiro de Cernadelo tiveram fundação particular, no entanto o contexto histórico permite aceitar esta proposta como plausível. Mesmo a igreja de São Tiago poderia tratar-se de um templo de origem particular, que, beneficiando de um clero mais activo, de maiores recursos ou de um orago mais popular, fosse, posteriormente, elevada a sede paroquial. Pelos factores opostos a outra igreja acabou, possivelmente, por ser reduzida a capela e votada a um progressivo abandono, que terá resultado no seu desaparecimento, permanecendo, contudo, o hagiotopónimo até aos dias de hoje. O mosteiro, através da interpretação que o doc. n.º 45 dos Vimaranis Monumenta Historica nos permite6, terá pertencido a um tal de Vasco Forjaz, que o doou ao Mosteiro de Guimarães. Após a doação, o declínio acentuou-se, possivelmente com a transferência do escasso clero que o compunha e das possíveis propriedades para o cenóbio vimaranense. Nunca tendo exercido grande importância sobre a comunidade, rapidamente a sua memória se obliterou. Apesar de já se tratar de uma referência moderna, não podemos deixar de ponderar o que nos diz o abade de Cernadelo nas Memórias Paroquiais: Está esta freiguezia situada em hu valle de hum monte chamado de Santo Lebres, corrupto vocabolo, porque antiguamente dizerem estivera hua cappella de Santo Euzebio, no alto do ditto monte (Capela, Borralheiro e Matos, 2009:304) Desta tradição decorre, possivelmente, a identificação de uma das imagens com o papa Eusébio I (Gomes, 1996:86), afirmação que resistimos a aceitar, por falta de argumentação sustentada. Não deixa, contudo, de constituir mais uma referência hagiotoponímica com algum significado, cuja relação com os vestígios identificados poderá ser explorada. No seguimento da pesquisa documental e bibliográfica, partimos para o trabalho de campo. Tivemos um primeiro contacto com as peças que se encontram no museu Martins Sarmento e procedemos a uma primeira análise formal. Uma das obras é uma peça escultórica de vulto (fig. 1), que parece estar numa posição de oração ou até mesmo de contemplação. Um dos indicadores dessa expressão é demonstrada pela forma como são esculpidas as mãos, ou seja, parece indicar-nos um gesto de meditação, reforçado também pela posição em que o volume do corpo se encontra. A imagem parece estar inclinada ou até mesmo ajoelhada, demonstrando a sua fisionomia uma postura tímida. Formalmente apresenta um recorte que nos parece pouco erudito, passando um aspecto rudimentar, devido à desproporcionalidade em relação ao resto do volume. Parece estar envolta por um manto unido ao centro por uma faixa. Apresenta um rosto delineado, sendo o contorno dos olhos, do nariz e da boca bastante pronunciados. Outra particularidade interessante desta peça é a forma como é trabalhado o seu cabelo, demonstrando algum cuidado no seu tratamento. Evidencia um pescoço bastante marcado, ou então poder ser a representação de um colarinho nessa zona. Outro pormenor encontra-se na zona inferior da peça que demonstra um recorte ou entalhe muito bem definido. No seu todo esta escultura indica um trabalho rígido que transparece uma execução vernacular do artista. A segunda peça é um elemento em granito em forma de tímpano com uma cruz esculpida ao centro e envolta por um círculo, elemento que surge algumas vezes nos portais das igrejas medievais (fig. 2). Apresenta as duas faces esculpidas, com a mesma representação em ambos os lados. Ponderamos a hipótese que este elemento tivesse como objectivo ser vazado, característica comum também nos portais românicos. Pensamos que será um pouco precoce afirmar que esta peça seja de facto proveniente da freguesia de Cernadelo, devido a todas as ambiguidades e dúvidas que os relatos presentes nos inventários da Sociedade Martins Sarmento nos levantaram e que tentaremos esclarecer numa segunda notícia. O restante espólio encontra-se ainda na propriedade da Casa do Casal. Uma escultura de vulto e uma espécie de silhar ou pedra em forma rectangular. Este elemento tem gravado em uma das faces, um rosto que nos parece transparecer feições de cariz religioso e talvez com uma função apotropaica, ou seja, pode ser visto como um símbolo que tem a função de afastar o mal. Esta ideia de utilização de figuras religiosas e fantásticas foi um tema muito apreciado na arte românica, constantemente presente nas fachadas e portais da nossa arquitectura românica, com o significado de proteger os nossos templos religiosos das desgraças do mundo terreno. Estas representações tinham também a missão de passar uma mensagem cristã. (fig. 3). A segunda peça, também uma escultura de vulto (fig.4), apresenta características semelhantes no tratamento do rosto comparativamente com a outra escultura depositada no Museu. A zona do tronco é mais pronunciada, parece também receber um manto, ou noutra perspectiva, reforçada pela análise de José Manuel Tedim, que gentilmente correspondeu ao nosso pedido de análise, a peça em causa poderá sugerir, de forma estilizada, as asas de um anjo. Aponta ser uma figura coroada e demonstra uma expressão mais altiva, relativamente à imagem depositada no Museu. Outro aspecto curioso é o medalhão que apresenta na zona do peito com uma cruz gravada, que mais uma vez reforça a ideia da transmissão de uma mensagem de cariz religioso. Ambas as peças parecem ter o mesmo tratamento. Todos os elementos escultóricos denunciam, características que nos levam a apontar terem sido executadas pela mesma mão. Existem semelhanças entre as peças principalmente no trabalho do manto. É utilizada a mesma técnica no trabalho dos rostos, sobressaindo a mesma noção rígida e vernacular da personalidade das peças, que não podemos deixar de mencionar que poderá ser uma intenção propositada do próprio artista. Por todas estas similitudes formais, achamos que estas duas peças terão sido realizadas com o objectivo de serem observadas juntas, isto é, como uma peça única, pois, na nossa opinião, deverão representar uma cena religiosa, a qual só através da sua integração conseguiremos perceber a sua função iconográfica, que tentaremos desenvolver posteriormente. No entanto, achamos que, pela análise formal realizada a ambas as peças, poderão ser elementos de uma cena alusiva à Anunciação da Virgem, ou seja, ambas as figuras, apesar de até ao momento não apurarmos claramente os símbolos iconográficos, têm características que nos remetem para essa temática religiosa. Segundo José Manuel Tedim, ambas as figuras poderão representar uma Cena da Anunciação da Virgem, pois, se repararmos, uma das figuras tem as mãos postas enquanto a outra sugere de forma estilizada as asas de um anjo. Quanto ao elemento em forma de tímpano, com cruz gravada e envolta por um círculo parece-nos ter um tratamento diferente, mais cuidado em relação às restantes peças, ou seja, não denotamos características comuns ao nível formal, assim como, ao nível dos materiais. O tipo de pedra utilizado nesta peça parecia ser composta por um grão diferente. O Gabinete do Património Histórico ainda se encontra numa primeira fase de pesquisa, que consistiu na inventariação das peças, levantamento bibliográfico e trabalho de campo7. Uma segunda fase da pesquisa tentará apurar a proveniência destas peças, assim como, continuar com o estudo formal e iconográfico das obras mencionadas. No entanto, apesar da investigação em causa ainda estar no início e pouco elucidar sobre a proveniência e simbologia destes elementos, achamos importante registar nesta primeira notícia todos os dados que conseguimos apurar até ao momento, assim como, fazer um apanhado sobre outras questões que esta investigação nos levantou.
Figura 1 - Escultura de vulto depositada no Museu Martins Sarmento (88 x 36cm)

Figura 2 - Elemento em forma de tímpano 
com cruz gravada
(179 x 95cm)

Figura 3 - Pedra rectangular ou silhar com figuração presentena Casa do Casal (41 x 46cm)

Figura 4 - Escultura de vulto a encimar um pedestal na Casa do Casal (123 x 43cm)

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

História da Igreja Matriz de S. Tiago de Cernadelo e Da Terra

A igreja de São Tiago de Cernadelo

NOTA GEOGRÁFICA
E HISTÓRICA
Servindo de leito ao Rio Sousa, Cernadelo é uma freguesia eminentemente rural, protegida, quase escondida, apesar de ser atravessada por vias importantíssimas desde, pelo menos, a Idade Média. Do Alto dos Três Caminhos, na partilha com a vizinha freguesia de São Miguel, seguia uma estrada que percorria o lado nascente de Cernadelo, fazendo a transposição do Rio Sousa na tardo-medieval ponte da Veiga. Seguindo pelas veigas e encostas da freguesia do Torno, com passagem pelas imediações da Torre de Vilar, esta via fazia a ligação com a estrada que do Porto seguia para Amarante. Ainda há poucos anos era possível observar vários trechos de calçada ao longo do percurso desta antiga via, entretanto “apagados” pelo “progresso”. A freguesia é delimitada a norte pelo monte de Santo Eusébio, hagiotopónimo praticamente esquecido – embora nos meados do século XVIII ainda estivesse bem presente na memória da população –, que nos remete para a lembrança de aí ter existido uma capela dedicada ao referido santo. O pároco de Cernadelo, no ano de 1758, relatava que está esta “freiguezia em hu valle de hum monte chamado monte de Santo Zebres, corrupto vocabulo, por antiguamente dizerem estivera hua cappella de Santo Euzebio no alto do ditto monte “(Capela, Borralheiro e Matos, 2009:304) A sul, o Rio Sousa, que lhe esboça a orla, definindo-lhe o território. Em trabalho anterior (cf. Cardoso e Silva, 2009) já desenvolvemos o possível algumas questões relacionadas com a história mais antiga desta freguesia. Falamos designadamente das referências ao mosteiro de Cernadelo e à igreja de
São Pedro. Ambos os templos são mencionados num documento datado do ano de 1059, que consistia num inventário de bens que o mosteiro de Guimarães possuía no Entre Douro e Minho. Pela mesma época já se referia a existência da igreja de São Tiago, actual matriz. Do mosteiro não se preservou qualquer vestígio à excepção da referência documental, não sendo sequer possível apontar a localização do seu assento. Já relativamente à igreja de São Pedro, apesar de fisicamente desaparecida, a sua memória ficou fixada no topónimo São Pedro, pequeno lugar desta freguesia. Nas Inquirições de 1258, na colação da freguesia de Sancti Jacobi de Cernadela, era referida a existência de uma igreja num reguengo do rei, tudo indicando tratar-se da mesma de São Pedro. Vejamos como o padre Francisco Peixoto interpretou a informação presente na inquirição: Havia porem na freguesia uma outra igreja, situada num Reguengo, a qual era do rei, e dava á outra [à de São Tiago] a décima parte
do rendimento do referido reguengo (Peixoto, 1914:2). Não era invulgar, no distrito da mesma freguesia, a existência de dois templos. Na perspectiva de Domingos Moreira, poderemos estar perante a subsistência de duas igrejas, depois unidas em uma só freguesia, persistindo, por algum tempo, uma como principal e outra como filial (capela curato) até à extinção da menos importante (Moreira, 1971:123 e 124). As Inquirições parecem evidenciar essa mesma evolução relativamente ao mencionado no documento de 1059: em 1220 a freguesia já era denominada São Tiago de Cernadelo, demonstrando a subordinação da igreja de São Pedro à paroquial de São Tiago; em 1258 atesta-se essa mesma dependência, que acabaria por resultar na sua extinção e sua conversão em simples capela e/ou no seu inevitável desaparecimento. A persistência de hagiotopónimos na freguesia é interessante. Para além dos casos já mencionados de Santo Eusébio e de São Pedro, existe ainda o lugar de São Sebastião, onde outrora esteve a capela da invocação do mesmo santo e que o padre memorialista Crispim Álvares da Silva afiança que dizem pertençe ornalla à camera deste concelho [de Lousada], do que necessita muito, por dizerem a mandara fazer El Rey Dom Sebastião (Capela, Borralheiro e Matos, 2009:305) Em 1842 ainda se procedeu a um restauro desta capela, por iniciativa do capitão Manuel José Teixeira Rebelo, da Casa de Soutelo e das Pereiras, juiz ordinário do concelho de Unhão. Hoje subsiste apenas o lugar e a memória. Em 1220, em resposta às Inquirições de D. Afonso II, o pároco de São Tiago de Cernadelo afirma que havia aí reguengos e cinco casais propriedade da própria igreja. Mais tarde, nas Inquirições de 1258, os jurados atribuem a posse da igreja a herdadores, sendo a apresentação do pároco confirmada pelo arcebispo de Braga, informação que demonstra a fundação particular desta igreja (herdadores = herdeiros dos funmelhante, em Lousada, ocorria com a igreja de São Pedro de Caíde que tinha como anexa a de São Tiago de Figueiró (Paços de Ferreira). Os bens da igreja de Alvarenga (nos quais se incluía os rendimentos e bens de raiz da de Cernadelo) constituíram a base patrimonial duma comenda nova da Ordem de Cristo. Inserem-se neste contexto os marcos de delimitação ornamentados com a cruz de Cristo que ainda hoje existem em ambas as freguesias. Com o Liberalismo o Estado apossou- se de todos os direitos de padroado, pondo fim à existência de freguesias anexas. O Padre Carvalho confirma tratar-se de igreja anexa à de Santa Maria de Alvarenga, rendendo ambas 240 mil reis e avançando a existência de 32 fogos, cerca de 160 habitantes (Costa, 1706:400).
Poucos anos depois, nas Memórias Paroquiais de 1758, o vigário Crispim Alvarez da Silva contabiliza 237 habitantes e refere que o pároco da freguesia é aprezentação do reitor de Santa Maria de Alvarenga e, procurando alertar para as dificuldades económicas com que vivia, faz um breve balanço das receitas: tem de renda que paga o rendeiro ao vigário des mil reis tres
libras de cera, dous alqueires de trigo, e setecentos e sincoenta. E trinta alqueires de pão meado, e vinte e dous almudes de vinho. As obradas que pagão os freguezes fazem sincoenta medidas, e hu campinho que hé da rezidencia colheu o São Miguel passado quinze alqueires de pão, e de vinho quinze almudes, o qual pão todo vendido a preço de doze vinteis faz a soma de vinte e coatro mil reis, ajuntando o dinheiro que paga o rendeiro cera, e trigo a todo são quarenta mil reis ao certo, os incertos são muito lemitados porque a freguezia hé pequena, e muita pobre- za, e finalmente della não pode viver
hu parocho conforme pede a sua decencia (Capela, Borralheiro e Matos, 2009:304). Em 1882, na sequência da reestruturação das circunscrições eclesiásticas, e numa tentativa de as fazer corresponder à divisão administrativa civil (distritos), a paróquia de Cernadelo transitou da diocese de Braga para a diocese do Porto.

ANÁLISE ARQUITECTÓNICA
E ARTÍSTICA
A Igreja Matriz de Cernadelo (fig. 2) será uma construção ainda do século XV, aproveitando elementos de uma igreja anterior, seguramente medieval (muito provavelmente na minha opinião (João Sousa) a nossa igreja terá sido aproveitada do Mosteiro De Cernadelo). É um edifício humilde, muito pequeno, mas equilibrado, constituindo-se como arquétipo de um românico muito tardio e resistente, rural e isolado. O portal Sul, embora de menor dimensão, respeita o mesmo estilo. Junto deste, uma tampa sepulcral inserida na reconstrução Quatrocentista do edifício. Planimetricamente a igreja de Cernadelo é composta por nave única, transepto e capela-mor rectangular, mais baixa do que a nave. Formalmente o alçado principal, é composto por portal de arco de volta perfeita, de aduelas largas e esquinas chanfradas. No seguimento do portal abre-se um pequeno vão de iluminação, rasgado posteriormente, como é mencionado na memória descritivada intervenção realizada em 1978. O remate é feito por empena triangular, onde se denota claramente o aumento em altura, que a igreja sofreu na década de 70, do século XX. A sobrepujar a empena, ao centro, temos uma cruz latina em granito e lateralmente, em cada uma das extremidades, dois pináculos de forma piramidal, também em granito. No alçado lateral direito (fig. 3) salienta-se o vão correspondente ao portal lateral, que segue os parâmetros formais do portal principal, isto é, composta por arco de volta perfeita, constituído também por aduelas largas e esquinas chanfradas. Ainda neste alçado, encastrada, vemos uma pedra, ornamentada por uma cruz “tosca” envolta por dois círculos, este que é o Símbolo da Freguesia e que não se pode perder, pois até nas pedras de fronteira com as outras freguesias esta cruz esta presente é símbolo muito comum, presente nas tampas da escultura funerária da época medieval. Muitos arqueólogos que já investigaram a nossa magnifica igreja dizem que esta laje estaria disposta no exterior da igreja, servindo de tampa a uma sepultura escavada no saibro do adro, prática corrente do enterramento da época medieval e bastante presente nas igrejas e mosteiros do território do Entre-Douro-e-Minho, mas não aquela pedra é o Símbolo da Freguesia. No alçado lateral esquerdo, não temos «qualquer vão de entrada ou iluminação. Ainda no espaço da nave, a rematar a empena é introduzida como remate central, também uma cruz latina em granito. O volume correspondente ao espaço da capela-mor (fig. 4), também de forma rectangular, de menores dimensões e mais baixo que a nave, exteriormente, revela algumas alterações resultantes das intervenções de 1978 e anteriores. A parede fundeira terá tido um vão de iluminação posteriormente fechado. Igualmente neste espaço, conseguimos perceber claramente o aumento em altura. Volumetricamente, a igreja de São Tiago de Cernadelo é composto por mais dois volumes (transepto), dispostos lateralmente e que foram construídos na campanha de obras de 1978, já mencionadas, pois a igreja tornara-se pequena para o número de paroquianos da freguesia. Num dos volumes está inserido o espaço da sacristia. Desta campanha destacam-se as seguintes alterações: demolição da sacristia velha (lado sul); criação de dois volumes que formam o transepto (o do lado norte incorpora a sacristia nova); inclusão de dois arcos ligeiramente abatidos no encontro das paredes dos novos volumes com a capela-mor; o altar-mor colocado num patamar dois degraus acima do transepto e três acima da nave. (fig. 5) Cerca de um ano antes, conforme
é descrito na Memória Descritiva do projecto de 1978, já se havia procedido à remoção do reboco exterior das paredes, à colocação da cinta de betão, ao lançamento da placa de cobertura, à execução das escadas do coro e à abertura da janela da fachada (AEP, Memória descritiva...). A torre sineira deste templo paroquial encontra-se localizada na zona posterior e ausente da arquitectura que corresponde ao espaço da igreja. Formalmente apresenta-se como uma obra do século XVII / XVIII e encontramos semelhanças estilísticas entre esta e a igreja, através da utilização de remates que ornamentam esta torre, ou seja, pináculos em forma piramidal. O interior também mudou muito desde o século XVIII. Por essa altura o vigário fazia menção a três altares, o mor hé de S. Thiago os dous de bayxo são hu de Nossa Senhora, e outro do menino Deos, não tem naves, nem Irmandades; hé pequena (Capela, Borralheiro e Matos, 2009:304). Destes três altares resta apenas um, (pois com os anos o outro altar-mor apodreceu e ainda não foi comprado outro) o de Nossa Senhora do Rosário, sendo esta uma imagem apreciável ainda do século XVII. O altar-mor já não é o mesmo. Através da análise do património móvel da igreja paroquial de Cernadelo (altar colateral, altar-mor e esculturas religiosas), denota-se as diversas alterações que vieram desvirtuar a personalidade deste templo, ou seja, parte das esculturas encontram-se bastante repintadas sem que se consiga perceber o seu devido valor. O altar colateral que formalmente apresenta semelhanças com um altar rococó, encontrava- se desmantelado e segundo fontes orais, terá sido deslocado para a igreja nos finais da década de 80, do século XX. Neste altar (fig. 6) temos presente ao centro, num nicho, Nossa Senhora com o Menino. Lateralmente, a imagem de São José com o Menino e a
imagem de São Joaquim. Ainda nesta mesma máquina retabular estão presentes as imagens do Menino Deus e a imagem com a representação de Santa Ana e a Virgem. Na parede correspondente ao arco cruzeiro (do lado direito) foi aberto um pequeno nicho (devido ao apodrecimento do outro alter-mor), onde estão presentes as imagens de Santo António, São Sebastião, São João, Santa Luzia e Nossa Senhora das Dores. Também estas esculturas estão bastante adulteradas, devido a intervenções realizadas sobre a policromia original. O altar-mor (fig. 7) formalmente, corresponde a uma obra de transição entre o rococó e o neoclássico (finais do século XVIII, princípios do século XIX), isto é, no seu todo denotamos as formas diluídas e concheadas do remate, próprio do estilo rococó, no entanto, o corpo do altar e a base, já são bastantes mais contidos, como podemos verificar pela adopção da coluna clássica e pelo trono eucarístico bastante simplificado. Também segundo fontes orais da freguesia, a imagem de São Tiago, orago da freguesia, e a imagem do Sagrado Coração de Jesus, distribuídas no altar-mor, terão sido repintados recentemente, o que levou a uma perda da sua policromia original, bem como, algum do seu interesse artístico. É de realçar neste conjunto, a imagem de Cristo Crucificado. Da vista da capela-mor para a nave, ainda temos presente o coro-alto (fig. 8) em madeira, que terá sido aumentado na mesma campanha de obras da década de 70, do século XX. Do espólio iconográfico desta igreja é de salientar uma custódia em prata dourada, que atualmente não se encontra no espaço da igreja. Em 1923, esta igreja terá tido mais um conjunto de reformulações, estas encontravam-se testemunhadas numas pinturas sobre as paredes interiores do arco cruzeiro, já eliminadas, mas que ficaram registadas em fotografia. O teor era o seguinte: «REFORMADA ESTA IGREJA EM 1923 sendo o paroco Rev-DO P.e José dos Santos Barroso Cernadelo 21-11-1923» Na parede oposta, correspondente também ao arco cruzeiro, encontrava-se pintado o seguinte testemunho: «TESTEMUNHO DE INFINDA GRATIDÃO a todos os benfeitores desta igreja, especialmente á grande benemérita a Exma Snra D. Francisca dos Santos Bastos da Ilustre – Casa de Figueiredo - desta Freguezia rende o PE J.S.B» Ao longo dos séculos, e por diversas razões, as igrejas paroquiais que marcam a paisagem do concelho de Lousada, foram alvo de inúmeras alterações, a Igreja de São Tiago de Cernadelo não foi exceção. Estas transformações deviam-se muitas vezes à mudança dos cânones litúrgicos, aos quais estes espaços deviam adaptar- se, motivos de índole artística, de conservação e reconstrução, etc. A igreja paroquial de São de Tiago de Cernadelo, no seu conjunto, é caracterizada pelos seus traços vernaculares, marcadamente rural e de cariz regional, é o espelho da freguesia onde se insere, ou seja, um espaço bastante depurado, com fisionomia simplificada mas com detalhes que ainda hoje nos levam a perceber a antiguidade deste edifício.


Fig. 1 - Foto antiga da igreja de Cernadelo, antes das reformas de 1977/78

Fig. 2 - Vista da fachada principal








Fig. 3 - Vista do alçado lateral direito

Fig. 4 - Vista exterior da capela-mor

Fig. 5 - Projecto de remodelação de 1978

Fig. 6 - Altar colateral

Fig. 7 - Vista da nave para o altar-mor

Fig. 8 - Vista da nave para o coro-alto

Fig. 9 - Pedra com o Símbolo da Freguesia